“Este lugar foi uma bênção de Deus em minha vida. Através deste trabalho, eu posso ir e voltar de cabeça erguida, sem olhar para trás, de consciência tranquila”. O depoimento sobre o Conjunto Penal de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, é do ex-detento Gilson Dias Guimarães.
Mas como uma pessoa que foi privada de sua liberdade diz que o presídio onde ficou custodiado foi uma bênção? A resposta vem do próprio Gilson. Ele destaca que pagou pelo crime que cometeu e que, no local, teve acesso a oportunidades que nunca teve antes.
Tive pessoas aqui que me viram como ser humano, como uma pessoa que ainda tinha jeito e, graças a Deus, eu aproveitei as oportunidades Gilson Dias Guimarães Ex-detento
O acesso ao trabalho e à educação é um dos pilares do programa de reinserção social da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap). De acordo com o superintendente de Ressocialização Sustentável (SRS), Bacildes Terceiro, a reinserção dos presos à sociedade é feita observando diversas questões.
“A integração social, que é trabalho e educação, a documentação civil, porque sem a documentação civil a pessoa privada de liberdade não pode nem trabalhar e nem estudar, e sai do presídio sem ter o mínimo suporte para começar uma vida melhor, e temos toda a parte biopsicossocial, que é o atendimento com médico, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, que fazem a assistência tanto para o interno, quanto para os familiares”, explicou em entrevista ao A TARDE.
Ainda segundo o superintendente, o trabalho prisional é estruturado em três possibilidades: atuando na manutenção das unidades – no qual o preso tem remição de pena (três dias de trabalho diminui um dia da pena) -, trabalho remunerado em oficinas de trabalho dentro dos presídios e, ainda, trabalho remunerado em alguma empresa conveniada com a Seap.
“Milhares de internos hoje trabalham na manutenção das unidades prisionais – quem faz a manutenção são eles -, de pedreiro, de carpinteiro, eletricista, soldador. Então, essa parte de manutenção hoje é feita por eles, supervisionados pelos setores laborativos das unidades”, afirma Bacildes Terceiro.
“Além deste trabalho, que é o trabalho laborativo por remição de pena, existe também o trabalho remunerado. Neste trabalho remunerado, nós trabalhamos com o projeto ‘Começar De Novo’, em que os internos que se destacam nesse trabalho estrutural já evoluem para um trabalho remunerado e são encaminhados para o setor privado, para empresas que queiram contratar, com os benefícios da lei, que não é CLTista, não é carteira assinada, é o regime disposto na lei de execuções penais, que dispõe que o pagamento seja pelo menos 75% do salário mínimo, sem os encargos trabalhistas”, destacou.
De acordo com dados da Seap, atualmente, 2.285 internos do sistema prisional baiano estão trabalhando, sendo que 78 atuam em empresas contratadas pelo Estado, através do programa Pró-trabalho. Além disso, 14 convênios com empresas foram firmados através do Projeto Começar de Novo e 411 detentos participam atualmente de capacitação profissional.
Todos os internos do sistema prisional que trabalham e estudam, remunerados ou não, têm remição da pena.
E foi graças a este suporte, que Gilson conseguiu sair da vida do crime. Hoje, ele é gerente de uma empresa conveniada à Seap.
“Fui preso em 2007, em outra cidade, e vim para cá em 2020. E desde o início de 2021, comecei a fazer o trabalho laborativo aqui na unidade de Lauro de Freitas. Conheci minha profissão aqui, devido às oportunidades que eu tive”, disse.
“Foi um projeto muito bom em minha vida porque, muitas vezes, dentro deste lugar, a gente começa a subestimar nossa própria capacidade, mas com um bom incentivo, contando com pessoas que só me ajudaram, e aproveitando as oportunidades, eu fui descobrindo essa profissão e pude descobrir este dom que estava escondido dentro de mim”, acrescentou.
Ele ainda ressalta que, hoje, usa a própria história para conscientizar internos que estão cumprindo pena no Conjunto Penal de Lauro de Freitas.
“Sou casado, tenho uma família que me apoia bastante. Estou conseguindo sustentá-la com fruto deste trabalho, com o meu salário, com o suor do meu rosto, e eu sempre tanto passar a minha imagem. Eu sempre digo a eles: ‘Se vocês quiserem um bom exemplo, eu estou aqui. Modéstia à parte, estou aqui’”, fala.
E Gilson não é um caso isolado: Willian trabalha na biblioteca da unidade de Lauro de Freitas, e é lá que ele ocupa a mente e planeja o futuro fora do presídio.
“Estou aqui há dois meses, trabalhando na biblioteca. Isso é uma oportunidade de ouro, porque faz com que a gente entenda a importância de exercer uma atividade, uma ocupação dentro do sistema. Tenho o objetivo de fazer um curso profissionalizante. Na saída agora – eu saí e retornei -, já estava vendo sobre um curso de refrigeração. E o projeto é esse”, fala Willian, que destaca a importância do salário que ganha trabalhando na biblioteca.
Sou casado, tenho dois filhos. Com o dinheiro que ganho aqui, ajudo minha esposa. Esses salários ajudam bastante, porque ela tem arritmia cardíaca, e servem justamente para eu comprar a medicação dela Willian detento
Um detento que preferiu não se identificar e que trabalha na horta do presídio conta que, mesmo sem conhecimento prévio de agricultura, aprendeu o ofício. Assim como Gilson, ele diz que a oportunidade que está tendo na prisão é uma nova vida.
“Só de nós estarmos aqui, já é uma nova vida, aprendendo a colher, a plantar. Essa vida eu nunca tive, nunca trabalhei em horta, nunca fiz nada disso, mas a oportunidade que eu tive aqui já é uma nova vida. Só de estar aqui aprendendo, para amanhã ou depois eu sair daqui e ter uma nova vida. Trabalhar e comer aquilo do meu suor”, falou.
William ainda destaca a importância do salário que ganha com o trabalho e também já planeja a vida fora do sistema prisional.
“Eu vou ter meu ‘terreninho’, vou plantar minha horta, para comer do suor do meu rosto. Trabalhar, plantar, para colher aquilo que eu aprendi aqui, porque foi uma oportunidade muito boa para mim. O dinheiro que eu recebo aqui é uma grande ajuda, porque ajuda nos custos de casa, nas coisas necessárias que tem que comprar. E também juntando o dinheirinho que eu ganho aqui para abrir um negócio”, conta.
De acordo com o superintendente de Ressocialização Sustentável, além de ser fundamental na reinserção do preso, o trabalho prisional contribui para uma maior segurança das unidades.
“O trabalho prisional incentiva a produção, incentiva o senso de responsabilidade, o orgulho dos familiares, e ele deixa o presídio mais seguro. Como? Porque isso reduz e distensiona a unidade prisional. Quando as pessoas estão trabalhando e ocupadas, elas estão fazendo um serviço público e não estão no pátio. Eles estão em ambiente de trabalho”, diz.
Reinserção por meio da Educação
Além do trabalho, a educação desempenha um papel fundamental na reinserção dos presos à sociedade. Nos presídios baianos, são oferecidas oportunidades dos internos cursarem ensino fundamental, médio e até superior.
Segundo dados da Seap, atualmente o estado tem 1.826 presos cursando o ensino fundamental, 460 o médio e 41 o superior, sendo que outros 74 foram aprovados em universidades públicas e estão em processo de matrícula. Além disso, 639 internos fazem cursos de arte/cultura disponibilizados no sistema prisional.
Nos presídios também são aplicadas as provas do Enem e do Encceja (que serve para obtenção do certificado de conclusão do ensino fundamental ou do ensino médio). Com relação ao Enem, o sistema prisional baiano teve 3.344 internos inscritos em 2023, enquanto em 2022 foram 2.652, um crescimento de 26%. No Encceja, foram 2.230 inscritos em 2023, contra 1.613 em 2022, uma alta de 38%.
O ex-detento Gilson Dias Guimarães conta que ele foi um dos aproveitaram as oportunidades de educação.
“Concluí o ensino médio aqui, através do Encceja, que foi realizado aqui na unidade. Aproveitei as oportunidades que me foram dadas, e contei muito com a ajuda da professora, da direção, dos terapeutas ocupacionais, enfim, aproveitei todas as oportunidades de remição que eu tive acesso e, graças a Deus, consegui minha liberdade”, falou.
Para o interno Willian, a educação é uma forma de dar direção às pessoas que entraram cedo no mundo do crime.
“O estudo ajuda a abrir a mente, seja a escola, curso profissionalizante, porque, assim como eu, muita gente não tem uma profissão definida, entrou cedo na vida do crime, terminou se perdendo e não teve uma qualificação”, falou.
“Se tivessem mais cursos profissionalizantes, [as pessoas] teriam essa oportunidade, porque a mente começa a abrir para outros mundos com relação a essa ilusão do crime e a ter uma profissão, um trabalho. E, consequentemente, não ter a desculpa de dizer que voltou para o crime porque não sabia fazer nada. Você tem um trabalho, aprendeu a fazer alguma coisa, então diminui a possibilidade do cara reincidir”, acrescentou.
Para Liana Resende, pedagoga do Conjunto Penal de Lauro de Freitas, a educação e o trabalho são os melhores caminhos para tirar os internos da situação de cárcere. “Eles vêm com a mente totalmente voltada para o crime e, cabe a nós que trabalhamos com a ressocialização, tentar mudar a história. Os internos, quando estão no cárcere, mesmo eles tendo cometido um crime, não aceitam que estejam aqui, que estejam pagando pelo crime”, afirma.
A pedagoga diz que a pena faz parte do processo de ressocialização, para que o interno entenda que seus atos têm consequência, no entanto, não há motivo para penalizar o preso ainda mais.
“A gente sabe que, na ressocialização, ele tem que entender que tem que ter o castigo, que foi o que ele cometeu lá fora. Mas dentro disso, eu vou castigá-lo mais ainda no cárcere? Não. Eu vou dar a oportunidade para que ele venha a entender que aquela vida que ele estava levando lá fora não vai levar a lugar nenhum. Aqui dentro é uma oportunidade que ele vai ter de transformar, de modificar aquele pensamento voltado para o mundo do crime. Para que ele venha a estudar, a trabalhar, ele venha realmente ressocializar”, acrescenta.
O superintendente Bacildes Terceiro destaca que a questão educacional nas unidades prisionais baianas é motivo de orgulho para ele. “As pessoas não conhecem, mas nas unidades prisionais, em todas elas, funcionam escolas. Nós temos escola municipal e escola estadual. Na unidade de Itabuna, por exemplo, que é o nosso grande modelo de ressocialização, um presídio que funciona à base de ressocialização, de 840 internos, 624 estão estudando em sala de aula”, afirmou.
Ainda de acordo com o superintendente de Ressocialização Sustentável foi implementada também a educação superior nos presídios baianos.
“Isso para nós é fantástico, fabuloso! Existe ensino superior nos presídios. Hoje nós temos em Itabuna, Teixeira de Freitas, Valença, em algumas unidades”, revela Bacildes, que destaca que a maioria dos cursos é voltada para a área de engenharia e ciências exatas.
“A educação de nível superior é à distância. O que é que a gente articulou, principalmente com a Universidade Federal do Sul da Bahia, que é onde tem o maior número de alunos: vamos tentar colocar os primeiros 40% desses cursos à distância. Então a gente organiza no Infocentro uma televisão grande, com um professor, que hoje é uma turma exclusiva para eles, pela quantidade de alunos, e os alunos estão assistindo aula”, explica.
Para o superintendente, o sucesso da reinserção dos presos à sociedade depende muito das oportunidades que são oferecidas a eles. “A gente costuma dizer que, para a ressocialização, só precisa dar uma ‘ousadiazinha’ e deixar ela funcionar, porque a coisa realmente é uma onda”, diz.
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